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Bem-vindes a Marginália 3

Quadrinhos, música brasileira e outras coisas a mais. É somente requentar e usar! Made in Brasil

Reinventando a roda: Cangaço Novo (2023)


Ubaldo, O homem que vai salvar o cinema nacional?

Informações legais:
Ação/Faroeste/Drama
Ano: 2023
Direção: Fábio Mendonça e Aly Muritiba 
Roteiro: Eduardo Melo e Mariana Bardan 
Produzida pelo O2 filmes
Série original da Amazon Prime Vídeo Brasil

NÃO CONTÉM SPOILERS 
(nenhum grave pelo menos)

Acabei de terminar a primeira temporada, Cangaço Novo não tem nada de especial, não tem nada de inovador, não tem nada que o faça um grande marco na história do audiovisual brasileiro, mas possui grande qualidade, e está nas graças do público, com muito méritos, muito méritos mesmo. 

Infelizmente de algum tempo pra cá se ganhou uma cultura muito tóxica que toda obra tem que ser densa, que ter conteúdo, tudo é conteúdo, tudo tem que ser motivo de debate. O sarrafo de produção mainstream não é mais aquela bobajada dos anos 90/00 o público hoje quer pensar, nessa pegada sai filmes como Bacurau (2019) ou O Poço (2019). Isso prejudica a vontade de consumir obras mais ""simples"", como filmes de ação, que é o caso de Cangaço Novo, por ser cliché, por ser batido e coisa e tals. Seria isso um elitismo cultural? 

Vamos com calma, vamos devagar.

Nós, nordestinos, vivemos um imenso traumas de atores paulistas/cariocas, atuando de forma jocosa, representarem o nordeste, isso é culpa da globo (leia-se mídia mainstream no geral). a Globo inventou que o baiano fala meu rei, a globo inventou que todo nordestino no sul é a porra de um zelador ou empregada doméstica, a Globo que inventou a Juliette ou que tudo que é relacionado ao nordeste tem que ser comédia, as produções atuais do nordeste são comédias em 90% dos casos, cheio de caricaturas e esteriotipos que enchem o saco. E não estou desvalorizando a comédia, também são de qualidade.
 Por isso que quando brota uma produção que diz ser "do nordeste" os próprios nordestinos ficam bastante receosos, não cria um interesse nato, foi o meu caso quando vi Cangaço Novo em anúncios, o primeiro pensamento foi "ah, isso deve ser só uma produção no meio do sertão com um jegue, um cabaré e um barzinho, ninguém aguenta mais" mas muito pelo contrário, Cangaço Novo investe num segmento pouco utilização no Brasil: a ação.

Não tem nada pra abrir os dentes nessa série, é uma produção de ação, um drama de fato, em pleno nordeste. Coisa rara levar nossa terra a sério.

Cangaço Novo não é feito "pro nordestino" ela é feita DO nordestino, da gente pra gente.

E do que a série se trata? De Ubaldo Vaqueiro (Allan Souza Lima), um ex-cearense que vive na zona sul de São Paulo, começamos o episódio piloto com ele sendo demitido do banco, enquanto seu Ernesto (Rodrigo Blat), seu pai está internado em condições graves de saúde. Ubaldo descobre mexendo nos documentos de seu pai que ele possui uma herança em seu nome, lá no interior do Ceará, sua terra natal - que mais tarde descobrimos que é Cratará - onde a população vive a eterna lembrança do pai biológico de Ubaldo, Amaro Vaqueiro, uma figura quase beatificada, que deixou alguns bens. Ao chegar em Cratará, conheça suas irmãs, Dinorá (Alice Carvalho) que tá em uns corres de assalto a banco com sua quadrilha, justamente na modalidade do novo cangaço - daí que vem o nome da série - esses assaltos rápidos e bastantes violentos. Também Edilvânia (Thainá Duarte). Ubaldo é capturado pela quadrilha do novo cangaço durante um assalto a banco e para poupar a própria vida, faz a promessa que irá garantir assaltos melhores. E assim termos o enredo, num roteiro bem fechadinho inicialmente e bem conectado.

Vou começar pelo mocotó de aquiles que são as atuações que deixam a desejar nas cenas de drama, uma história audiovisual é sustentada pela direção, roteiro e atuações, se pelo menos dois elementos da obra foram bons, a obra será boa, é o caso de Cangaço Novo, atua bem quem precisa atuar bem, os periféricos deixam um pouco a desejar, mas nada que irá atrapalhar a sua experiência. O roteiro é conectado de uma forma excelente, porém ele não é fechado, já que acaba com tudo aberta, prontinho pra engatar a segunda temporada.
Outro "defeito" que posso pensar é que ela não é maratonável, explico, cada episódio tem 50 minutos, ao todo são mais de 8 horas de série, os episódios inciais são arrastados, meio sem lenço e sem documento, não está estabelecido ainda onde a série passa, porque só descobrimos o nome da cidade lá pra quase na metade. Então eu recomendo tu ver metade da série em um dia, e a outra metade em outro. Porque a partir de um ponto a série joga fora a premissa estabelecida no seu episódio piloto, vira uma série sobre outra coisa. Mas ainda é um western, e continua sendo de ação. A passagem de bastão é feita de forma suave, com a apresentação de novos personagens, como Zeza (Marcelia Cartaxo), Leinneane (Hermila Guedes). Dividir e consquistar assista desse jeito

Mas entendam, as atuações são boas, Alice Carvalho que faz Dinorá tá no papel da vida. Será lembrada por quem viu a série, o principal, Ubaldo anda sempre com aquela cara de azia, Allan Souza Lima entrega muita bem uma pessoa não tão agradável de olhar, sempre incomodado com algo. Bichinho, deve ser genética mesmo.

"aquele Yakisoba desceu mal pra caramba"


Falando do roteiro, ele se apoia um pouco na jornada do herói, mas as decisões narrativas tomadas não levam a esse caminho, se fosse uma obra genérica, Sabiá (Adélio Lima*), por exemplo, seria esse mestre que guiaria Ubaldo do mundo sem graça de São Paulo, para o fantasioso mundo do sertão Cearense. Mas a introdução é 1/4 da jornada do herói, vem o chamado, negação do chamado, depois toma seus próprios rumos. O desenvolvimento de personagem de Ubaldo é surreal, muito bem feito, pense em um caba bem lapidado durante a série.
*Ele mesmo, que fez o Gonzagão no filme Gonzaga de Pai pra Filho (2012)

A rima narrativa dele conhecendo o seu passado e o passado de seu falecido pai é sublime, porque a cada começo de episódio  termos o passado, que parece ser uns 30 anos atrás... ANOS 90, sim o passado é nos anos 90, se for vinte anos, é anos 2000, que nós vamos descobrindo o passado de Amaro, ao mesmo tempo que Ubaldo vai descobrindo seu presente, e olha só, ele repete a história do pai. Essa rima é incrível, uma série muito bem escrita e planejada. 
Interesante também observar como Ubaldo sai de alguém invisível (bancário e militar), entocado no meio dum apê bem merda em São Paulo, para uma figura esperada, aclamada, um salvador, o filho de Amaro Vaqueiro.
Ao mesmo tempo que vai de alguém que é cerne do sistema, banco e forças armadas, para um completo marginal.

E a pomba do roteiro ainda termina sem fechar o arco, Amazon Prime lance a segunda temporada logo! 

Nisso comparo com a queridinha fase Joss Wheldon do X-Men, algo "simples" porém excelente pelas escolhadas tomadas, não por sua premissa.

A ambientação é perfeita, foi o que me fez apaixonar pelo seriado, porque eu moro numa cidade como Cratará e Cratará não tem nenhum tipo de fantasia, é só a população vivendo sua vida, a série se passa ficcionalmente no Ceará, foi grava na Paraíba e tem atores pernambucanos (quase a maioria), não tinha como dar errado.
Eu diria que tem mais clima de roça do que sertão.

A perfeição não mora na excelência exacerbada, mas na dosagem dos elementos na medida certa. Algo perfeito é algo equilibrado.

"Perfeitament balanceado, como todos as coisas devem ser."


 É uma retração meio seca (sem piadas em relação a isso), mais figurativa ("realista"), não está preocupada em ser "nordestina" o suficiente, todo esse estigma é plano de fundo, eu não vi presente nenhum daqueles esteriotipos preguiçosos que existem nas outras séries, é como disse um nordeste levado a sério. Não é assim:

Veja SP jumpscare

Uma coisa que um amigo meu relatou como atrapalhar a imersão foi a formalidade do texto, realmente não tá lotado daqueles bons palavrões nordestinos, como "raio da silibrina", faz bem roteiro em não optar por eles, porque é sempre engraçado pra caralho, até quando a gente mesmo fala entre a gente. Isso se dá porque a série não está preocupada em ser nordestina o suficiente. Ela é nordestina, e pronto.

A bandidagem não é algo nem banditismo social como algumas pessoas interpretam o cangaço original, nem uma marginalidade danosa e parasita como Tropa de Elite (2007) mostra, ou seja, não rola nem uma romantização boa nem ruim, é uma apresentação da bandidagem de uma forma parecida a qual o rap mostra, essa série combina com Artigo 157 do Racionais MC's, algo que combina muito com filmes de faroeste não é? 
É  uma representação interessante para esse segmento de assalto a banco, não tem nenhum superplano mirabolante, é um bando desorganizado, que não tem um líder, não tem um objetivo fora ganhar dinheiro. 

Apesar da representação seca, é óbvio que o fenônemo de assalto a banco em cidades pequenas não funciona desse jeito, nisso há uma romantização, no sentido de ficção da palavra.

Também perpassa por uma espécie de fantasia vivida pelos assaltantes, essa sensação boa de estar no poder, não atoa eles humilham a população, mandam tirar as camisas, roubam os celulares, estão rindo o tempo inteiro, atiram para o alto comemorando e vivendo a adrenalina. Ninguém ali rouba porque precisa. É isso, ninguém vive um estado e penúria, é só o corre, o corre pelo corre, porque o sistema é ruim, mas nóis é pior. 

A pior coisa que você pode fazer para uma minoria é infantilizar ela, como se fosse inocente, nunca tivesse errada, então essa representação de dúbia, é muito bem representada.

De antemão digo que rótulos irão atrapalhar a sua experiência em Cangaço Novo, não pense nos vilões e nos mocinhos ainda, é um típico western, porque veja, um protagonista que não conhece seu passado, entrando como forasteiro numa cidade pequena, dentro de um clima de alta bandidagem e tiros, muitos tiros. A ação em Cangaço Novo é o ponto mais fortes, excelentes sequências de ação.

Dirigir cenas de ação não é fácil, muitos diretores optam por cortes infinitos, montagens confusas e explosões, o senhor Michael Bay que o diga. A direção opta por um ritmo mais acelerados nas cenas de ação e demonstrar claramente o espaço o qual a ação acontece, durante os assaltos a banco todos os participes são mostrados, até aqueles que estão esperando do lado de fora, o que cria essa tensão. As cenas de luta física, sim, tem várias, é luta de cachorro, closes de corpo inteiro, coreografia brutais, não tem nada de bonito, nem plástico, é briga pra matar mesmo. A trocação de tiro é padrão hollywoodiano mesmo.
Poucos closes, e bastante planos abertos valorizando o cenário.
A fotografia abusa da bela iluminação natural que nosso senhor joga na paraíba, planos abertos, planos de contraste com o sol, as cenas noturnas são lindas e o mais importante dá pra enxergar alguma coisa. Não existe a desgraça daquela película amarela de Breaking Bad, é a luz do lugar mesmo.

gravaram isso no terreno de vovó, não é possível


A direção opta por utilizar bastante sangue, mas nenhum gore, sem tripas voando ou decaptações exceto pelos animais, veganos não esquentem o juízo nessa série por favor.

(Apesar de eu citar Breaking Bad de novo, aquele filme do Luiz Gonzaga tem uma fotografia horrorosa, é um laranjão terrível, de doer das vistas)

Tá amarrado, que coisa feia.


Todo personagem nessa série é reconhecível, por isso o roteiro não demora tanto apresentando eles. Quem mora no nordeste conhece um Jeremias (Enio Calvacante), conhece um Sabiá, conhece uma Dinorá da vida, cada personagem é bastante crível com a nossa realidade, isso faz com muito méritos, a série foi escrita por quem sabe e vive a realidade a qual está escrevendo, Isso fica muito claro inclusive pelas roupas, e cada um se veste de uma forma própria, as personas tem BASTANTE personalidade e carisma, como você se veste diz muito sobre. 

Pra mim o melhor personagem representado é o Ameaço (Rodrigo Garcia), ele é branco, gazo mesmo, e é aquele branco nordestino que eu sei apontar claramente quem é e você sabe quem são se já viu um. 

Rapaz eu estudei com esse bicho no nono ano...
Outro ponto que garante personalidade a quadrilha são seus nomes, na verdade apelidos: Facão, Moeda, Tirolesa, Duzentos, Sivirino (que deve ser nome), Delegado Pixinga (Junior Black) etc etc

Eu compararia a quadrilha com os nórdicos de Vinland Saga (leia minha resenha sobre Vinland Saga aqui), já que falei de Vinland Saga, vamos para máxima, onde tem guerra tem política e Cangaço Novo, assim como Vinland Saga, não se furta de representar a política. 

Parte política de Cangaço Novo:

O debate mais aparente aqui é o de gênero, Dinorá é também filha de Amaro Vaqueiro, inclusive anda com o revólver do pai, mas nunca teve o prestígio de Ubaldo, que acabou de chegar de São Paulo. Esse debate não é feito de forma gritante, mas está sempre presente. Se comparei a série com Vinland Saga, Dinorá é a Askeladd, a série não é bem sobre ela, mas poderia ser...
Se estamos lidando com um grupo de criminosos, tem violência sexual, mas graças a Deus acontece apenas duas vezes na série, sem nada explícito, nem uma banalização da violência de gênero, como obras que são focadas em figuras propositalmente odiosas (geralmente homens) tem. Aliás não se tem também cenas em puteiros, ou as famosas primas, vocês sabem do que falo. Essa questão de gênero é muito bem tratada, bem abordada. 

Sério, eu fiquei tão feliz que não tem um puteiro em Cratará, só por merece um 10 de 10.

Dinorá é a famosa mulher durona, pero no mucho, ao decorrer da série vermos que é alguém só muito traumatizada, e não tem opção a não ser tão bicha bruta, famoso ou dá ou desce.

Além de questões de gênero, o ponto principal de Cangaço Novo, aquele momento de passagem de bastão que disse, é a luta pela terra, latifúndios drenando a água da população, o dono? Simplesmente a mesma família que está no poder a mais de 40 anos, tanto na prefeitura com o Gastão Maleiro (Bruno Berllamino) tanto no senado. Ora ora, uma família "tradicional" da região que mantém seu poder através da política, eu nunca vi isso antes em terras nordestinas. É a realidade apresentada, o jogo sujo da política de interior, paráfraseando a própria série:
"Até quando é guerra, é política"

A seca aqui não é uma condenação de Deus, é problema político! Pois os Maleiros estão drenando a água de terrenos locais, comprando açudes que eram público também. A população não é "resistência pura" porque no povo reside o impéto da mundança, mas sim porque é ou lutar pelo o que é seu ou morre de uma vez. Isso entra aquela velha máxima que se escuta bastante nas ruas, o Brasil não é um país pobre, só mal administrado, na verdade, sua riqueza tem servido para interesses errados.

Olha um ponto bacana, o problema em si não é o político corrupto, mas como os políticos servem aos interesses dos poderosos, isso quando não são eles a própria elite, ou seja, podem destruir determinado lugar de forma completamente legal. E isso é o mais perigoso, quando as coisas funcionam como deveriam, apesar de claro, é política de cidade pequena então tem corrupção a rodo.

Acho que vale uma comparação com Bacurau (2019), é bom entender que as duas produções tem plataformas e propostas diferentes, Bacurau se propõe a ser uma fantasia, uma fábula onde a lição de moral é a mensagem polítca, é mais pretensiosa, carregada, mais cabeça. Não atoa foi queridinho do campo político da esquerda, tem toda essa pulsão, porém, pra mim, Cangaço Novo tem mais personalidade que Bacurau... Acredito também que toca em debates que Bacurau não alcança por escolhas. O certo é, as duas obras são excelentes, compartilham de alguns atores como Junior Black (rip) e talvez seja um demonstrativo de uma nova leva de obras nordestinas por aí. 

Precisamos desfazer o impacto cultural do nordeste global.

Apesar de ser uma produção de ação nos modelos blockbuster, dá pra extrair bastante coisa, mas ainda é uma produção de ação...

Por útlimo, sua soundtrack, recheada de música dos anos 70, achei um MILAGRE não ter tocado Belchior, que é cearense inclusive, tinha o que encaixar aqui. Durante os episódios você vai ouvir Fagner, Erasmo Carlos, Quinteto Violado, obviamente AVE SANGRIA e Jards Macalé. A trilha sonora original reproduz aquelas típicas notas de filmes de faroeste, mas com instrumentos daqui mesmo.

(lengo lengo tengo lengo tengo lengo tengo)

Em um apanhado geral,
Cangaço Novo não tem nada de extraórdinário, a sua qualidade está mais na execução do que na ideia. Conta com boas escolhas narrativas, um ritmo que se arrastar no começo, mas depois engata bem o resto da série, uma representação honesta do nordeste e da pilantragem, personagens dúbios e cheio de carisma.

É mais ou menos Breaking Bad se tivesse mulheres bem escritas.

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