Bem-vindes a Marginália 3

Quadrinhos, música brasileira e outras coisas a mais. É somente requentar e usar! Made in Brasil

Música sertaneja revolucionária antiga x agronejo capitalista atual.


Vida longa ao Marxismo-Lenismo Tiaoista

 Bem, eu não gosto de sertanejo atual, ou das antigas. É um estilo musical muito distante da minha realidade litorânea, apesar de também morar perto de muitas roças. Pra falar a verdade o Sertanejo sempre foi meio Virginia ou Carlinhos Maia dos gêneros musicais, todo mundo fala mal, todo mundo odeia acha até um porcaria e não sei o que, mas eles CONTINUAM muito populares, e até talvez o gênero musical mais ouvido do Brasil, ou pelo menos sempre bem comercialmente a mais de 40 anos.

 É o velho 'ranço' (aff que ódio veyr) das coisas populares, e uma ideia errônea que se criou em relação a arte que o sucesso comercial vem as custas de um empobrecimento dos valores artísticos, ou seja, um músico só pode ser famoso "se fizer música ruim", mas isso não é necessariamente um fato, qualidade e sucesso comercial podem andar de mãos dadas. Mesmo que aquele artista de "mercado" se adeque a indústria, ele não perde imediatamente suas valorações artísticas, como aconteceu com o Nirvana, sabe como o Nirvana ficou famoso? Eu explico nessa postagem.

 O ranço, utilizando essa palavra novamente, ele une linhas políticas que cada uma com suas respectivas teorias elaboram como já "antigo" sertanejo universitário era uma porcaria, unindo Nando Moura até o comunistas mais radical das interwebs. O problema mesmo mora, é o motivador para eu escrever esse artigo, um ponto de convergência entre figuras mais conservadoras e progressistas, mesmo que de forma não assumida eles reclamam, ou problematizam da mesma maneira, só que com palavras diferentes. Que é aquele velho discurso que a música atual não tem valores, com a pequena diferença de quais valores são considerados importantes. Por parte da esquerda, se criou na internet quase um consenso que antigamente o VERDADEIRO sertanejo caipira cantava sobre as dificuldades das lutas no campo, e guerra de classes, e música defendendo reforma agrária e até sertanejo "revolucionário" (estou sendo irônico).

 Esse argumento já vi sendo postado por algumas figuras de esquerda famosas na internet, vou apresentar de forma simplificada: antes o sertanejo tinha consciência de classe e retratava as dificuldades da vida caipira, atualmente é só propaganda do agronegócio.

 Vou problematizar esse argumento ao final do texto. 

 Assim eu apresento a problemática do artigo: será que existiu esse caipira revolucionário? Quando foi que o sertanejo virou bagunça? A arte precisa ter valores pra ser válida?

 Pega na minha mãozinha e vamos decorrer sobre a história da música sertaneja. 

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180, 180, 360

Não consegui encaixar Munhoz e Mariano no texto, então só vai ter esse gif mesmo.

Vale um aviso: é uma pesquisa breve com uma OPINIÃO ao final. Sinta-se livre para discordar ou concordar. 

1 - Origem do sertanejo, primeiros anos, pagodes de viola e uma boa salada brasileira

 Uma dúvida que eu ACHO que você sempre teve é por que se chama música sertaneja se o ritmo não é nordestino, ou não tem essa vibe de sertão. A palavra sertão não possui origem consensual entre a galera da etimologia, há teses que veio da Angola, outros atribuem ao latim. O importante é um seguinte: Na primeira metade do século 20, sertão era sinônimo de interior no geral, especialmente aqueles afastados do litoral e pouco povoado, não à toa, as especiarias amazônicas tinham a conotação de DROGAS DO SERTÃO, quer dizer, até hoje existe esse termo, é oriundo dessa época.
 
 Com a evolução da linguagem e a produção cultural massiva do nordeste sobre o seu próprio sertão, a palavra virou sinônimo de área seca, quase deserta, pouco povoada e agreste no geral.

 Outra palavra que vou utilizar nesse texto porque os artigos bases que pesquisei usam é Cabloco, acredito que a maioria que está lendo esse texto não seja velha o suficiente pra saber o que significa, mas é um termo antigo que geralmente é associado a indígenas, mas no contexto caipira, interior especialmente de São Paulo, se refere a pessoas que são filhas de brancos com indígenas. É o equivalente indígena da palavra mulato.

 (Assim como mulato, talvez possa ter uma conotação racista atualmente (sobre cabloco eu não ideia se é racista, é longe de minha realidade), mas os textos originais possuem essa carga histórica que não pode se perder.)

 Que por falar em São Paulo, lá que se origina essa criação de um ideário caipira, essa vida no campo em todas as mídias. É importante falar que caipira e sertanejo são coisas diferentes, se por uma vez sertanejo era sinônimo de interior em genérico. Caipira é uma invenção 100% paulista, igual a levar guarda chuva pra baile. Vida cabloca de pessoas mestiças com indígenas e brancos, um autêntico caipira. Na vida rural paulista há alguns costumes indígenas, inclusive a origem do nome caipira:

Sendo  assim,  o  termo  música  sertaneja  é  diferente  do  termo  caipira  (de  ‘música caipira’),  que  é  uma  denominação  tipicamente  paulista,  usada  para  denominar  o  caboclo  (e sua  produção  cultural),  que  não  residia  nos  centros  urbanos.  "Kaai  'pira"  na  língua  indígena significa, o que vive afastado ¹

São Paulo no geral tem uma caralhada de cidade com origem em línguas indígenas. Ou inventam que é origem tupi pra justificar umas cidades tipo Cubatão (origem incerta).
 
Na música termos o sertanejo e no cinema tínhamos Mazzaropi, sei que poucos atualmente vão pescar essa. Então o cito o Chico Bentos, muita gente fora de São Paulo pode pensar que ele é mineiro, mas o personagem é paulista, baseado na cidade de Santa Isabel, onde o Maurício passou parte da infância.

Na mandioca : r/porramauricio
Chico Bento é meu personagem favorito do Maurício.


 O primeiro sertanejo que se tem registro foi gravado em 1929, por convencimento do Cornélio Pires, numa rádio da capital federal (RJ a época), a primeira música se apresenta como "Jorginho do Sertão, moda de viola paulista, folclore paulista", a música já possuía elementos comuns a música sertaneja até os dias atuais, como duas vozes e a viola. 

 O disco ainda contava com outro lado chamado "Moda de Pião" e vendeu toda suas cinco mil cópias, que tinham sido financiadas pelo Cornélio Pires, em menos de 20 dias. Com isso abriu os olhos das gravadoras e rádios que passaram a investir no gênero. A alcunha de CAIPIRA que colou no sertanejo passou a simbolizar unicamente o estilo de vida centro-sul brasileiro, excluindo a representação nordestina e nortista que se misturavam a época.

Até  1929,  a  “música  sertaneja”  era  simbolizada  pelos  diversos  gêneros  nordestinos populares no Rio de Janeiro e em São Paulo nos anos 10 e 20, tais como emboladas e desafios. Com as primeiras gravações de duplas formadas por “autênticos caipiras do  interior  paulista”  –  nos  termos  das  próprias  gravações  –  a  música  sertaneja começou a ser “colonizada” pela estética do interior do centro-sul, a estética caipira. E  nesse  processo,  a  dupla  cantando  em  terças  tornou-se  a  formação  central  do gênero.  Apesar de todas as  mudanças  sofridas pela  música sertaneja nos últimos 80 anos, a dupla foi o elemento que se manteve. Se antes havia Alvarenga e Ranchinho (anos 30), hoje há Zezé di Camargo e Luciano.²


 As músicas tratavam sobre o dia-a-dia da vida na roça, uma boa parte, especialmente nessa época entre 1930-1950, histórias, contos, cantigas sobre trabalhadores rurais, algo que se aproxima de crônicas. Também cantores que eram atores do rádio, como os mencionados Alvarenga e Rancinho, eram uma dupla de comédia, fazendo aquele papel de caipira bem comum do que o Chico Bento fazia nos quadrinhos, ou o Mazzaropi no cinema.
A música sertaneja é um sopão de Brasil, como muito bem resumido: 

Conforme Vilela (2014), a música sertaneja inicialmente foi conhecida como música caipira ou de “raiz” e, em sua origem, está centrada em valores católicos patriarcais tradicionais, que enfatizam uma sociabilidade em torno da família extensa, da solidariedade comunitária e da obrigação religiosa herdada e vitalícia. Os primeiros cantos, utilizando a viola, foram os da catequese. Misturando melodias portuguesas às dos índios, crenças cristãs às danças pagãs, surgiram ritmos e gêneros, como o cateretê e a catira.³

 A catira e cateretê se apresentaram de forma mais incisiva nos anos 50, com a criação dos pagodes de viola. Numa fase que o Sertanejo cresceu além dos caipiras paulistas, crescendo em sua variedade de instrumentos nas gravações e ritmos, deixando de apenas dois caipiras e uma viola, agora possuíam gaitas (sanfona como dizem por lá), harpas e entre outras tradições mais sulistas. 

 Lá do Sul, no quintal da Rádio Cultura em Maringá/PR, o mineiro Tião Carreiro cria a famosa batida da música sertaneja, unindo o que já existia de sertanejo na época com ritmos de sua região. Recebeu a alcunha de pagode pelo Lourival dos Santos, que compôs o primeiro pagode e 'renovou' a música sertaneja com essa segunda fase.

 Pagode de Brasília é o primeiro pagode de viola gravado, por Tião Carreiro e Pardinho. 

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"Cê tá maluco? Respeita o moço, patente alta dá aula bigode grosso" - Tião Carreiro.


 Então é bom estabelecer essa diferença, tem o sertanejo caipira de 1930 até 1950, e esse "novo" tipo de sertanejo com os pagodes de viola, uma música mais ritmada e até com adição de mais instrumentos e estilos, mas a base lírica e artística se manteve, dois cantores e esses contos da vida comum.

 AÍ QUE TÁ, entre esses assuntos da vida cotidiana, eventualmente o tema de disputa pela terra, ou disputa de classes no campo vai aparecer numa música ou outra, mas majoritariamente a cosmovisão sertaneja na maioria das músicas sempre foi conservadora, nunca houve um ímpeto revolucionário nessa fase "antiga" do sertanejo, atribuir isso é puro cherry-picking.

 Qualquer pesquisa sobre essa fase do sertanejo vai te dar o resultado esperado, se você escolher as músicas que corroborem seu ponto.

 Até porque são inúmeros artistas, de várias partes do Brasil (Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Mato Grosso) com os mais variados temas abordados em suas músicas, eu posso pegar sertanejos antigos que sejam parecidos com os atuais, citando 3:

1)Alvarenga e Rancinho estava nos anos 60 falando em tomar pinga com limão numa música que se assemelha com rock.
2) O Tião Carreiro falando que as "moças de hoje eu não facilito".
3) E uma catira sobre talaricagem.

 Assim como se eu filtrar músicas que mencionam reforma agrária ou conflitos do campo terá uma porção de outros títulos, basta garimpar e ter o filtro em mente. Cê acha música sertaneja sobre a revolução de 1930. Lançada na época dos acontecimentos.

 Aí chega uma figura pública na internet dizer que o sertanejo antigo de fato mostrava a vida do campo e etc, daí o sujeito me cita A Grande Esperança do Zilo e Zalo, mas aí tem um porém, essa música é datada de 1980, guarde essa informação, e não época caipira do sertanejo (chegamos lá na frente). Assim como uma música sobre reforma agrária não representa a maioria dos temas abordados na música antiga caipira, seja na época dos pagodes, na década de 30 ou no sertanejo atual. Seria burrice, com todo respeito, resumir toda a complexidade do gênero a primeira música que usei de exemplo ou as outras duas ou qualquer uma que seja.

 E você pode argumentar "Ah, mas antes ainda tinham essas músicas como o Zilo e Zalo (Chico Rey e Paraná regravaram essa), hoje em dia não se acha nada" talvez as pessoas em 1980 nunca tivessem ouvido falar na A Grande Esperança, então deve ter algum cantor de sertanejo HOJE cantando sobre reforma agrária também, só não conhecemos.

 Mas há uma meia verdade no comentário de "antigamente era diferente" ou basicamente "coisa X acontecia antes, mas não acontece mais". Tratamos sobre a coisa X, o suposto sertanejo revolucionário que nunca existiu, cabe agora delimitar o seguinte, o que é antes? Em que ponto a gente pode dividir a música sertaneja entre antiga e atual? Quais são os pivôs dessa mudança? Em qual data?

 Bem, com base na minha pesquisa, eu dataria da década 70, pelos motivos abaixo.

2 - Influência dos filmes (e quadrinhos) de bang-bang, invasão country e surgimento do sertanejo como conhecemos.

 O cinema de faroeste*** foi uma modinha americana que perdurou lá pra idos de 1950-1970, eram verdadeiras grandes obras, que funcionou como um tipo de softpower do "verdadeiro ideário americano", é um Estados Unidos RAÍZ, sem governo, sem prédios e a vida corporativa, apenas um homem, um revolver e seus valores. Um homem que fazia sua própria lei e próprio destino num ambiente selvagem e corrompido (com os foras da lei), essa é aquela caricata imagem do xerife/cowboy nos filmes de faroeste americanos. Tem tudo que eles gostam, armas, liberdade pra cacete (não tem governo no velho oeste) e atirar em nativo indígena, claro.

 São aqueles famosos filmes com o John Wayne 

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Que deus o tenha, mas esqueça onde nazista do caralho

 Só pra situar a postagem vou mencionar alguns filmes do período:
Rio Bravo (1959), Winchester'73 (1950), The Seachers (1956), North to Alaska (1960), The Deadly Companions (1961) e Two Rode Together (1961). Também vale mencionar o seriado de televisão que foi muito famoso nas zonas rurais brasileira, Daniel Boone (1964-1970), que era Faroeste apesar de ser menos cowboy. 

 De uma certa maneira, os filmes de faroeste ajudaram a consolidar uma visão das zonas rurais do Estados Unidos que não fosse a velha caricatura caipira (rednecks ou hillbillies vai depender da região) que nem sempre foi tão agradável pra não falar ofensiva em certos casos. O brasileiro vai saber do que estou falando porque já assistiu Pica-pau:


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Os melhores episódios eram com gente da roça

 Eram representações vindas dos grandes centros urbanos sobre a ralé da terra do Tio Sam, famosos white trash. Se você não pescou, estou falando daqueles caipiras burros que sempre apareciam em Pica Pau ou no Pernalonga, roupas velhas, casas de madeira ou até mesmo no pântano, barbas longas, suspensórios folgados, banjos e aquele sotaque carregado que a dublagem brasileira sempre atribuía aos caipiras paulistas.

 Por que eu tô falando disso? É um rabisco breve da criação de um imaginário COUNTRY, da vida cowboy, que é muito mais honrada do que vida rural "redneck", isso perpassou até pela música rural dos Estados Unidos, que vivia de gêneros como blues da roça nos anos 40, para os honky-tonkys, rockabilly nos anos 50 e a criação de um imaginário folk e country nos anos 60 e 70, período que coincide com a popularidade dos filmes de faroeste. 

 Curiosamente, é um caso de white-washing de pessoas brancas, porque o sinônimo de vida rural passou a ser a alta casta de atores de hollywood, Hollywood monopolizou os discurso da vida rural, chapéu de cowboy, cinto de fivela, calça jeans e jaquetão. Repaginando para um modo mais apresentável com fins de propaganda uma imagem do homem do campo, porque os rednecks nunca foram uma boa imagem o suficiente.

***VALE UM PARÊNTESES, o cinema de faroeste DOS ESTADOS UNIDOS é muito diferente daqueles filmes de Bang-bang italianos, TOTALMENTE diferente e ambos, é claro, influenciaram a música sertaneja. Inclusive os filmes de "bang-bang" italianos eram até mais sucesso de público do que as grandes peças hollywoodianas, apesar de serem escorraçados pela mídia internacional. Eu não citei no texto porque a altura da crianção do Spaghetti Western o ideário country já está estabelecido, inclusive os filmes italianos são fruto dele. Só pra fazer menção honrosa aos fumettis de faroestes italianos, Tex é o mais famosos deles.

 Fiz todo esse textinho sobre a existência da cultura country pra deixar bem claro, uma coisa é ser redneck (caipira) a outra é country e essa fantasia COUNTRY BOIADEIRA que o cinema criou virou softpower, máquinas de propagandas milionária, é óbvio que chegaria no Brasil, e AÍ!!!!! Só aí, lá pros anos 70 que começa uma discussão de mídias de uma separação da música caipira e música sertaneja. 

 Porque a música sertaneja começou a tomar influência da moda e estilo Country Americano dos filmes de cowboy. Quem começou essa gracinha? Os acadêmicos atribuem aos goianos Léo Canhoto e Robertinho, que introduziram a guitarra elétrica na música caipira.

 A influência dos filmes de faroeste é muito gritante na obra, toda sua estética é baseada nesses filmes. Isso já é aparente em seu primeiro álbum (1969), que conta com a famosa faixa Jack O Matador que é uma típica audio-novela, algo comum no meio caipira como mostrei, só de faroeste, sobre um típico fora-da-lei malvadão.

 Até os nomes eram bastantes do filmes, Kid e Jack que são os mencionados. A parte musicada não tem viola, não tem os ritmos típicos de Caitira ou Cateretê.  Era algo totalmente diferente, algo disruptivo e com dedo yankee. Aliás é desse sertanejo antigo que surge a famosa montagem de funk do pipo, eu adoro esse funk.

 Nem todas as músicas do álbum era roleplay de bang bang, as músicas "normais" também em NADA se pareciam com os pagodes de viola "raízes". Citando Apartamento 37 (música que já fala de amor).

 O meu ponto nem precisa ser explicado tanto, basta olhar a capa dos dois próximos álbuns da dupla:

Buck Sarampo é um nome muito foda.

  Só gostaria de destacar uma música de Rock Bravo Chegou para Matar (1970) que é O Lobisomem, a influência do cinema foi tão grande que até história de terror é contada. Essas inovações musicais nunca foram bem vista nos meios do sertanejo, e até por parte de uma esquerda purista que buscava preservar a identidade nacional trabalhadora, ou coisa parecida. 

Além da temática, Leo Canhoto & Robertinho vieram influenciados do cinema estadunidense, com uma representação de “faroeste”, como já dissemos, e traziam a introdução de instrumentos sonoros eletrônicos como a guitarra elétrica, aproximando-se das características ao rock internacional. A dupla tem suas canções duramente criticadas, não só por intelectuais opositores da ditadura e que faziam parte da esquerda brasileira no começo da década de 1970, mas também de artistas como Inezita Barroso que não considerava o hibridismo e a influência internacional presente nas canções como fazendo parte de uma tradição sertaneja.⁴


 Outra dupla fundamental para essa "virada de mesa" da música sertaneja é Milionário e José Rico, um mineiro e um pernambucano que se conheceram desbravando Brasil a fora. O seu estilo também era muito destoante dos modões de viola, aliás não havia viola nenhuma, em seu debut, o principal instrumento era a harpa, violão e um ritmo bem diferenciado. Como em Recordando Mato Grosso, em seu primeiro álbum De Longe Também Se Ama (1969). Depois tiveram um breve hiato de quatro anos e voltaram a carreira em 73, mais ou menos porque não achei tanta informação sobre os álbums entre 69 e 75 da dupla sertaneja.

Nenhuma descrição de foto disponível.
Grandes Millionaire and Joe Rich

 Eu não se José Rico é inspirado em Johnny Cash, pode ser apenas coincidência.

 O ponto que vale ressaltar é rancheira mexicanas, esse álbum é uma rancheira purinha, que apesar de não ser um ritmo "americano", ele faz parte da cultura sul do país, pela imensa comunidade mexicana no lugar, e os latinos também eram figuras presentes nos filmes de faroeste. 

 Cabe ressaltar que a rancheira gaúcha existe, mas o estilo musical aqui é mais próximos de grandes nomes da música mexicana como Camino de Guanajuato (1966), se você ouvir essa música bem, se não tivesse trompetes poderia passar tranquilo como um sertanejo estilo Milionário e José Rico. Pra não deixar de citar outros grandes cantores como Victor Fernandez, Antonio Aguilar e Cornelio Reyna.

Nesse primeiro álbum já tem todos os elementos do sertanejo "atual", boa parte das músicas eram de sofrência, assim como em todos os álbuns do Milionário e José Rico, já não há aquele ar crônica da vida rural, mas umas rancheirinhas de sofrência, como vale do segundo álbum Coração de Pedra e Nem Romeu, Nem Julieta.

 Pitadas sutis de música paraguaia também, inclusive o primeiro sucesso da carreira dos paranaenses Chitãozinho e Xororó é sobre um bailinho no Paraguai.

 A única coisa remanescente que dá pra chamar de sertanejo é o fato de ser uma dupla, todos os outros elementos não existem. Milionário e José Rico foram os moldes do boom do sertanejo dos anos 80, com a sutil diferença que eles não eram mexicanos-estilizados.

Por último: Sérgio Reis é um ótimo exemplo como o mercado country brasileiro foi se criando, antes de ser um ícone reacionário, digo, sertanejo no país, ele era um típico cantor da jovem guarda que só tava imitando Os Beatles basicamente, mas em 1975, depois de FLOPAR como roqueiro ele vira caipira do nada, mas não esse caipira do Tião Carreiro, ele vira Cowboy, e até se chama de CABLOCO na música cavalo preto, do álbum Saudades da Minha Terra (1975). UM HOMEM QUE É NETO DE ITALIANOS COM PORTUGUESES FAZENDO LARP DE CABLOCO. Chegaremos lá, calma.

Observem, educadamente, a diferença de imagem do mesmo cantor no espaço de dois anos.

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiwmeInA5c_RBMGzzUiBWuiptcSkv6K4egOAqtGj6IzS04klzlQVbMTvFGHgihaDVocWPwtl5i45t_4QJYYGRGh70e1Xkrn7HfVBiqRz-gguwzdjsgtYXOkwXlxmmEESigZHwOvl5_VsXZc/w1200-h630-p-k-no-nu/Sergio+Reis+-+1973.jpg
Sérgio Reis (1973)


Pra fazer justiça, nesse álbum tem uma música que fala sobre o campo, um de seus maiores sucesso na carreira, O Menino de Porteira, mas veja como ainda é só uma música de jovem guarda comum. O Som já é totalmente diferente do seu álbum de 75, até a capa, a estética, TUDO. Virou outro cantor, pô.

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Sérgio Reis - Saudade de Minha Terra (1975)

A pergunta que fica é de que terra? Ele é oriundo de um bairro nobre de São Paulo na Zona Norte (Santana), e fazendo música sertaneja. Minto, música COUNTRY brasileira. Inclusive no ano seguinte ele lança um álbum chamado Retrato do Meu Sertão (1976), regravando um dos maiores clássicos antigos da música caipira, Tristeza do Jeca. E aqui no Sérgio Reis já há mudanças significativas que dá pra classificar "deixar de ser raiz", primeiro que não tem viola, não tem dupla (só esse cara metido a Elvis brasileiro), não tem essa tradição oral da vida do campo brasileira, apenas uma tentativa de exportação de um modelo rural cowboy para o Brasil.

Só que tem um porém, esse novo sertanejo ele conviveu junto com os sertanejos caipiras e pagodes viola ao mesmo tempo, Tião Carreiro por exemplo ainda era famoso nos anos 70, houve disputa de espaços, e a música "raiz" antigas, ficaram para trás, especialmente depois de tantos grandes nomes do Sertanejo que surgiram nos anos 80, que nem vou mencionar nesse texto. A divergência artística criou um consenso na academia já nos anos 70, que dividia a música sertaneja e a música caipira. Sendo a música caipira uma criação cultural, e a música sertaneja uma coisa de indústria.

Assim, ao delimitar as características da música sertaneja, na obra o autor aponta a introdução do acordeon14 e da guitarra elétrica de Leo Canhoto & Robertinho15 como um dos marcos mais importantes para separar o caipira do sertanejo, além da delimitação do tempo de música graças as especificações impostas pela indústria fonográfica16. A introdução da guitarra elétrica seria o resultado da transformação melódica e influência de ritmos estrangeiros. Nepomuceno, por sua vez, também delimita, e, segue os mesmos passos dos autores já discutidos, pensando no que é música “caipira” e o que é “sertaneja” em seu livro Música caipira: da roça ao rodeio de 1999. A autora afirma que “a música [caipira] deixara de ser simplesmente arte, expressão da alma do povo, para se transformar numa indústria gigante, sustentada por vendagens astronômicas” (1999, p. 22).⁵
Você pode achar essa opinião razoável para 1999, quando o mercado está bem estabelecido, mas esses forasteiros são criticados desde da década de 70, e aqui trago aspas de Waldenyr Caldas, Acordes da Aurora (1977): 
Quase nada tem a ver com a música sertaneja produzida atualmente no meio urbano-industrial. Enquanto a primeira [música caipira] ainda desempenha um papel de elemento mediador das relações sociais, evitando com isso, a desagregação das populações do meio rural e no interior, a segunda tem uma função meramente utilitária para o seu grande público... com a inserção na indústria cultura, a música sertaneja transformou-se numa peça a mais da máquina industrial do disco (CALDAS, 1977, p. 19).

A música brasileira sempre teve setores que tinham quase um patriotismo de esquerda para achar uma verdadeira identidade nacional, uma música brasileira de verdade, por isso a Jovem Guarda (influencia do rock) e Bossa Nova (influencia do jazz) não foram tão bem aceitas logo de cara. Só que tudo não passa de dois mercados disputando entre sim, com a fantasia de preservação da cultura no pano de fundo.

Só que a disputa, ou criação de novos estilos não representam automaticamente a extinção da cultura anterior, até porque não houve genocídio da vida caipira no Brasil, a cultura de viola ainda é viva mesmo sem presença nas paradas de sucesso tão forte como antes. Duplas como Tião Carreiro e Pardinho, Tonico e Tinoco, Trio Para Dura, continuaram tendo relevância nos anos 70, com a diferença que agora o mercado sertanejo tinha se expandido, tendo concorrência com Sérgio Reis, Milionário e José Rico, Léo Canhoto e Robertinho entre outras.

 É comum a associação num sistema como o capitalista a morte de um setor do mercado significa morte da cultura como um todo, mas a cultura não pode ser resumida a venda de discos. O estilo caipira do modão não se acabou só porque colocaram guitarra elétrica no sertanejo e nem vai morrer por causa de Descer Pra BC.

 Felizmente, o Cowboy não está litorando e nem vai torar você.

 Depois da nova onda jovem do sertanejo nos anos 80/90, houve uma ruptura bem clara entre os dois estilos, uma nova geração estava por vir. Com suas infâmias calças apertadas, mullets e toda moda country americana.

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Chitãozinho e Xororó fizeram um dano irremediável a moda brasileira

 Ironicamente, atualmente muitas pessoas hoje, 2025, atribuem a Rick Renner, Zezé di Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo, Chico Rey e Paraná, João Paulo e Daniel, Rio Negro e Solimões entre as já citadas o "SERTANEJO RAÍZ" em oposição ao 'agronejo' atual, esse é o problema de tratar a música antiga como melhor, a música atual que você tá reclamando hoje, daqui a uns 40 anos será a música de verdade. A roda discursiva vai girando, como uma cobra engolindo a si mesma.


3 - Conclusão e opinião. 

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Marcha contra a guitarra elétrica (1967)

 Em 1967, num movimento liderado por Elis Regina, diversos artistas da chamada "MPB" produziram uns dos episódios mais vergonhosos da música brasileira, uma marcha contra as guitarras elétricas, o discurso era sobre a preservação da cultura brasileira contra o feroz imperialismo roqueiro, mas de verdade mesmo era apenas dois mercados disputado espaço, era um ato contra o progresso, que sempre há de chegar.  

 A raíz do argumento é sempre a mesma, a arte tradicional é valorosa, a arte nova é degenerada, e aí vai depender de cada convicção política para determinar aquilo que é considerado valoroso e aquilo que é considerado pobre. No caso dos circuitos de esquerda, valor = coisa popular, pobre = comércio.

 Só que a música antiga, no caso da postagem a música caipira, também tinham intenções comerciais, a intenção de vender uma imagem do campo, de vender uma nostalgia, há um discurso de mercado ele apenas se choca com um novo mercado mais aquecido e selvagem que está surgindo.

 É até engraçado demandar uma pureza de um gênero que nasceu com um instrumento português, na mãos de cablocos que cantavam ritmos indígenas, a mistura e influências de outras culturas é o que faz a nossa própria cultura funcionar.

 Quando artista importantíssimas como Inezita Barroso lutava pela manutenção da imagem caipira, a única forma que realizar isso num sistema capitalista é transformando em um produto e vender esse produto para quem tenha interesse. Viola, Minha Viola tinha um produto específico e público alvo específico. Se a existência de um novo sertanejo fosse tão perigoso ou "destruidor" da cultura brasileira um programa como esses jamais teria existido!

Ninguém escutava os pagodes de viola por "apreciação", é consumo. E há diferentes formas de consumo que não precisam ser contraditórias entre si, dá pra ouvir Luan Santana e Almir Sater ao mesmo tempo. A existência de Meteoro da Paixão não excluí a existência de Romaria

 Não importe quanto você tente encaixar suas convicções políticas, o sertanejo nunca teve um âmago de revolucionário com os valores importantes do campo, inclusive (OPINIÃO) acho incorreto atribuir que seja "uma de direita", porque uma arte que não seja propagandista não possui exatamente um lado no espectro político, isso é DIFERENTE de ser neutra, ela vai revelar os valores sociais praticados naquela época, por aquelas pessoas. Acreditar que uma música X vai ser a verdadeira face do povo é uma tolice, porque tem um ponto que poucas pessoas pescaram. 

 A imagem do caipira é uma persona, um personagem inventado no imaginário paulista que se enriqueceu enquanto sertanejo ao longo dos anos e inclusão de artistas não-paulistas. A imagem que é passada para as mídias é uma caricatura de um estilo de vida, com um sotaque exagerado, com um toque exagerado, e toda aquela estética produzida propositalmente para levar a cultura do campo país a fora. Então esse sertanejo bruto, pinguço, ranzinza é apenas uma persona coletiva das pessoas artísticas desse meio, e não uma tentativa de representação fiel da realidade. Acredito que nunca tenha sido.

Figuras a esquerda tendem a puxar uma interpretação "revolucionária" ao sertanejo caipira por atribuir valores morais desejáveis nisso. Uma pessoa conservadora pode utilizar o mesmo argumento, só que ressaltando seus próprios valores ali. De novo, é velha base do argumento "música antiga = valor, música atual = degenerada". Eu nem condeno quem possui essa visão, até porque tenho um blog de música dos anos 60/70 e quadrinhos antigos. O passado está resoluto, nele podemos cortar a nosso bel prazer e encaixar em nossas narrativas, enquanto o presente é contraditório, confuso e díficil de criar um discurso por cima, porque ele fala por si mesmo. Por isso é mais fácil encaixar suas convicções numa música antiga que menciona reforma agrária do que "Dentro da Hiluuuuxxxx. E o agronejo NÃO REPRESENTA para uma ameaça para uma cultura solidificada da vida caipira, assim como o sertanejo universitário não representou e o sertanejo dos anos 90 tampouco.

O fato de misturar funk e sertanejo não é a morte da vida caipira, aliás o campo se urbanizou, evoluiu, e preservar as tradições do passado não significa o isolar do resto da vida exterior, os dois fatores podem coexistir tranquilamente.

Não existe uma contradição entre indústria e arte, até porque atualmente, e a pelo menos um século, a única forma de ter acesso a cultura/arte é via do consumo, existem produtos e indústrias diferentes, mas sempre é uma relação de produto, tem gente que gostar comprar aqueles produtos que parecem limpinhos das garras do mercado. Tentar achar aquele gosto ou toque artesanal.

É uma música gourmet.

FONTES:
¹ <https://revistas.uece.br/index.php/bilros/article/view/7570/6337>
² Idem
³ CORTEZ, Fábio Nunes; SILVA, Maria Sueli Ribeiro da; CARVALHO, Michele Cristina Morais. Da música raiz ao sertanejo universitário: um estudo discursivo sobre o caipira em produções midiáticas. In: Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste–INTERCOM SUDESTE. 2015.
⁴ <https://tede.unioeste.br/bitstream/tede/4033/5/Gabriel_Silva_2018>
⁵ Idem

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