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Bem-vindes a Marginália 3

Quadrinhos, música brasileira e outras coisas a mais. É somente requentar e usar! Made in Brasil

Resenha: Piratas do Tietê - 1990, Laerte

Essa capa não foi patrocinada.

Uma nota sobre esse quadrinho, hoje, 05/08 liguei o computador para fazer um download, como vi que ia demorar, abri Piratas do Tietê para ler. Me liguei tanto nas tirinhas que esqueci completamente do que estava baixando. Isso indica muita coisa. 

Essa revista foi pirateada (óbvio), o que nem chega ser uma ironia. Vou passar o site de onde tive acesso foi do blog Download de HQs scans realizados pela/o Dani, seja lá quem seja muito obrigado e viva a pirataria!

Para não spammar essa postagem com bazilhões de fotos, confira nosso arquivo aqui.

De onde vem Laerte?

Laerte está inserida em um daqueles movimentos que consolidou os quadrinhos brasileiros, que aqui chamamos de CARTUM, por isso, artistas como a Laerte são chamadas de cartunistas, não quadrinistas a diferença do cartum/ou tirinhas para os Gibis ou HQs é que o cartum geralmente tem um tom mais humorístico/satírico que costumam aparecer em jornais ou revistas (como o Pasquim), as vezes recheados com críticas políticas, mas aí geralmente são charges. também Já a história em quadrinhos são revistas de tirinhas sequenciadas, sendo heróis o segmento mais famoso. É o que impera, pelo menos imperou por muito tempo no Brasil foi esse mercado do cartum, e cartunistas como a Laerte que fizeram esse gênero se consolidar no país.

Esse famoso movimento vem de São Paulo, muito bem representada pela revista Chiclete com Banana (editora circo, a mesma da revista aqui) que acabou por consolidar esses nomes do quadrinhos "underground", Los Três Amigos* junto ao Luiz Gê e até algumas tirinhas internacionais da divindade dos quadrinhos underground, Robert Crumb. A maioria das histórias tem essa cara bastante urbana e com uma pegada mais punk, o que era a moda contra cultural da época. Quadrinhos pretos e brancos, escatológicos e recheados de putaria, chegamos nesse ponto mais tarde.


*Rê Bordosa, Os Skrootinhos, Bob Cuspe, Wood e Stock do Angeli, Piratas do Tietê da Laerte e Geraldão do Glauco, esses citados são os famosos 'Los Tres Amigos' uma trinca dos cartum brasileiro que vem dessa época. Vocês conhecem, só não sabem pelo nome, impossível não conhecer algo tão compenetrado na nossa cultura. Afinal são figuras carimbadas em todas provas de português

Laerte, Angeli e Glauco

Angeli se aposentou em 2022 após diagnóstico de afasia, Glauco foi assassinado em 2010 e Laerte segue viva e ativa no meio, ainda postando na folha de São Paulo e em suas redes sociais.

Assim como o metal, o meio cartum com o passar dos anos (e o embraquecer dos cabelos) virou um recinto de boomer, com humor duvidoso, piadas com sogra e "odeio minha esposa gorda", aliás, o humor sempre foi nessa pegada 'mais masculinista' desde da aquela época e já era um problema também desde daquela época. Não dá pra chamar de natural, porém esperado de homens brancos paulistas produzindo humor, de fato tem coisa que é intragável de consumir, isso significa que antigamente era permitido e hoje proibido?

Não,
significa que hoje populações consideradas marginalizadas divide em pé de igualdade com os grupos da ordem dominante o mesmo espaço, ou seja, hoje em dia é muito mais fácil falar mal do Monteiro Lobato, basta bom senso e um aparelho conectado a internet. A internet não democratizou o debate, apenas possibilitou um feixe de luz para aquelus que viviam no escuro, digo isso como um homem assexual, que se não fosse a internet estaria embolado com a própria sexualidade até hoje. Isso significa que antes não existia preto, trans, gay, mulher ou outras minorias? Não, apenas podemos ir dividir espaços junto a grupos de ordem dominante, graças a produção massiva de mídia vindo de todos os lugares e todos os cantos, podemos, enquanto minoria, pautar debates melhor do que quando o meio era só feito de homens, brancos, cishéteros na sua grande maioria, puxando o próprio saco e inconsequente dos efeitos que tais abordagens poderiam ser para pessoas fora desse esquadro, que é bastante apertado. 
Só que a dinâmica das redes sociais só proliferam tretas, falsos debates e polêmicas, com algoritmos reconhecidamente propagando a rodo conteúdos fascistas e até decidindo eleições por conta disso. Porque a internet não é terra de ninguém, tem dono, tem interesses por trás e objetivos também, além de ser controlada por um meio arbitrário chamado algoritmo, que são programados por pessoas, que estão seguindo ordens, sejam diretamente dos donos como Elon Musk no xwitter ou de quem tá pagando a mais por isso. Não vale dizer por aí que a internet é democrática, todavia isso é papo para outra postagem. A disparidade do poder econômico, aliado a outros fatores e relações de poder ainda se aplicam na internet, é como se o coturno fosse tirado do pescoço e começasse a pisar no peito.
Balanceando a proposta, não é razoável se sentir decepcionado com uma obra de 1980, contudo muito menos seria razoável relativizar os problemas contidos só porque na época "não era um problema", era um problema, só se não havia um espaço público, geral e aberto para apontar isso. Então é preciso um ajuste de expectativas e um olhar crítico de onde vem aquele possível problema.

Resumidamente, hoje as minorias políticas (que são maioria absoluta da população) tem onde pautar, ao invés de viver ilhadas em seus próprios espaços.
Eu dei toda essa volta para dizer uma coisa, de lá pra cá a Laerte mudou bastante (bastante mesmo) Será que termos uma Laerte do velho testamento em Piratas o Tietê? 

Dona Laertinha, indignada com os memes do twitter

De onde vem Piratas do Tietê?
Publicado em formato de tirinha lá pra 1983 Piratas do Tietê é um trabalho de longo tempo da Laerte é postado até hoje. Uma ideia simples, bucaneiros no rio Tietê, o famoso rio paulista que corta o estado, indo de Salesópolis até Itapura, desaguando no rio Paraná (oh coitado).

Essa revista de mesmo nome publicada pela editora Circo em 1990 talvez seja um atestado de "auge" artístico, caramba, ter uma revista só pra si é sinal que Laerte estava consolidada, e estava mesmo.
Os piratas em si são desordeiros, saqueadores, imorais e até pouco carismáticos até certo ponto, mas não carecem de personalidade, principalmente o capitão, que dá pra eleger como protagonista na maioria das histórias.
E dos imorais que são, sempre estão bebendo, decapitando pessoas, roubando em bando e estuprando mulheres a rodo. Sim, se dá pra elencar uma coisa ""ultrapassada"" são as piadas com estupro, praticamente toda personagem feminina que tem o mínimo de contato com os piratas do Tietê é violentada, algo consciente, visto que são personas retratadas como bárbaros, contudo inconsequente pela quantidade absurda de cena de estupro (não é nada prolongado e visceral, mas é claramente um estupro e mostrado como um, só tem uma quantidades cavalares).
Eu, particularmente, fiquei incomodado com a quantidade de cenas assim
E tudo num clima meio "garotos são garotos", bem masculinista, aliás a quantidade de pênis presente nessas 14 edições do Piratas é algo cômico, nesse quesito nada diferente dos outros artistas, aliás, tem uma história só sobre isso, e é uma das minhas favoritas. Crise, publicada na edição 7
Se quiser ver o objeto vai ler os Piratas!

Falando no popular, tem pau pra caralho nessas histórias.

Todavia, em aspectos gerais, não colocaria Piratas do Tietê como algo que envelheceu mal, muito pelo contrário diria que as tirinhas presente ali pode explicar nosso passado recente, a ascensão dessa "nova direita" no país, porque piratas, em um aspecto geral é um exame da classe média paulista dos anos 90, que hoje é totalmente bolsonarista. Com calma, explico. 

Laerte é do meio, classe média, nisso tem bastante propriedade pra falar. Os personagens apresentam aquilo que é meme nos dias atuais, essa mesquinhez, elitismo e senso de superioridade que a classe média brasileira tem. Além do reacionarismo materializado que é o Capitão Douglas, milico morador desse condomínio 

Tudo isso de forma arquétipica, sendo um modelo que não se encaixa em ninguém especificamente, de fatos personagens, não caricaturas preguiçosas. De personagens reaças dá pra citar Silver Joe (caçador de piratas), o Síndico e o Capitão Douglas. O pânico moral é presente também, até uma tira que cita a terrível invasão islâmica ao Brasil, a fake news mais velha do mundo evangélico (talvez no tempo das cruzadas fizesse sentido). 

essa me tirou boas gargalhadas

 As tirinhas do Capitão são sensacionais nessa parte política, contudo é o trecho da revista que tem uma conotação mais clarividente, mesmo assim não é carregado. Por isso a própria Laerte indaga no editorial da ed. 5 "Como defender posições sem ser ranzinza?" essa pergunta é um contraste em relação a geração passada de quadrinistas, que viveram o auge do regime militar, onde a arte servia como protesto, o quadrinista precisava ser sempre engajado, críticando o governo, fazendo críticas sociais fodas, botando a galera pra pensar. Enquanto que a Laerte faz tirinhas como esta 

Mesmo nas tirinhas de protesto, o humor estava presente, isso fez que o imaginário brasileiro ficasse que tirinhas servem apenas para comédia, seja para criticar o governou ou alguma piada com rola, o que dificulta a adesão do público geral em trabalhos mais sérios, que também se faz presente aqui. Hoje a Laerte é mais conhecida pelas tirinhas abstratas que "ninguém entende", mas oras, quem disse que a arte tem uma utilidade prática? Essa presunção de entendimento pode atrapalhar a sua imersão no conteúdo, porque já se entra achando que tem algo pré-estabelecido, quando na verdade quem vai ditar o que a obra vai ser é ela mesma, na sua apresentação. E esses trabalhos mais sérios também estão presentes, mais rarefeitos, mas estão presentes sim. Lendo Piratas do Tietê você já consegue enxergar esse brotozinho da Laerte de hoje em dia.

Nas tiras de humor, tudo é muito bobinho, algumas contam até com humor físico mesmo, tipo o coiote do papa léguas se estrebuchando na parede, aquelas famosas tirinhas de jornais com apenas 3 painéis também, porque ninguém produz tirinhas como Laerte, aqui ela mostra todo seu arsenal, com diferentes traços, temáticas e estilos no geral, mas em todos eles, por mais diferentes que sejam você sabe que está lendo Laerte.

O humor está sublime, eu ri de chorar e dar aquele tapinha no joelho em algumas.

Não diria que a proposta aqui é poleminzar* através do absurdo, como é comum em quadrinhos dos anos 80, mas provocar, sutilmente ou as vezes mais gritante como Luta Livre de Classes (n3) 
*tomo ranxerox como exemplo...

Laerte não te incomoda, mas quer falar com você sobre alguma coisa, daí demanda a sua atenção maior para o que ela quer dizer.

Um ponto bastante positivo é que mesmo sendo um sucesso de venda, ela ousa a mudar a forma que produz, o ritmo, o humor e até nas histórias mais sérias. As primeiras edições eram publicadas no estilo do Fradim, na horizontal, depois da sétima mais ou menos, é uniformizada na vertical e muda drasticamente a logo da revista 

Apesar de ter ficado pior, é sinal de uma profissionalização, as histórias ficaram mais longas, menos histórias diferentes, alguns bons "dramas", como Salvador 40 Graus. Arriscar tão alto numa fórmula que já vinha dando certo é uns dos motivos pelo qual essa revista vale a pela.

Não há muito o que se elogiar graficamente nessa revista, apenas Laerte Coutinho, não tenho nada mais o que falar sobre. 
Menos colorida, ainda de sua fase underground tudo é preto e branco, com jogo de sombras, algumas de traços mais grossos, mas quando também vai pro traço fino, é uma maravilha. Pra não encher essa postagem e imagens vou fazer uma só pra isso. Confira aqui

O último ponto que ressalto são os editoriais da Laerte no começo de cada tira e as cartas do Tietê no final de cada edição, uma interação direta entre a cartunista o público. Ler esses documentos podemos entender do cenário de quadrinhos da época, o cenário de São Paulo, do Brasil, detalhes da vida pessoal dela e seus referências também, além da publicação de zines e tirinhas amadoras, claro, os hates também, que tem bastante. Público exigente.
Com isso ganha um feição mais intimista, descobri que Laerte já foi filiada ao PCB por exemplo.

Em síntese destaco individualmente a história do Batman se unindo aos piratas, na edição de compilação de histórias antigas, a 12
Nem é tão boa assim, mas é o Batman Laerte!!

Bem como Origem dos piratas do Tietê (primeira história), Capitão Douglas Manu Militari, Quadrinho Eleitoral Gratuito, A Safira do Faraó, Jacaré do Tietê, A revelação (uma crítica FODEROSA a igreja católica), Crise (a que linkei aqui), Salvador 40 Graus, Emundo Cachín Medina (apesar do traço racista), A primeira execução da Pena de Morte no Brasil e Vila Madalena.

Em linhas gerais, Piratas do Tietê é um cartão postal da cidade de São Paulo, da obra da Laerte e dos quadrinhos undergrounds paulistas da época, a partir dessas 14 edições dá pra se estratificar o suco que é a mente dela, que é uma das maiores que termos, se não, a maior na arte de fazer tirinha. É uma obra que sobrevive ao tempo, se fazendo necessária até hoje, para entender esse extrato tão perigoso que termos rodando pela sociedade (e aqui não estou falando dos piratas). Uma coisa que os cartunistas de Instagram estão tentando fazer desde de 2016 já foi muito bem feito em 1900.

Um humor simples, que é quebrado com uma ou outra obra mais densa e obras densas que são quebradas com tirinhas bobinhas. 

Seja para conhecer a história da arte nacional ou apenas se divertir recomendo, fortemente, Piratas do Tietê, 1990, Laerte Coutinho. 

Informações chatas
Todas (ou pelo menos a maioria das histórias) presentes em Piratas do Tietê
n1
Origem dos piratas do Tietê
Grafiteiro
O Milage da Vida
n2
Fagundes e Quadrinhos sexuais
Vozes da Selva (história com os piratas)
A safira do Faraó
n3 
Luta livre de classes
Rituais da natureza (Os gatinhos)
Vozes da Selva
Capitão Douglas Capricórnio
O Polumóvel
Don Luigi Lonstravagante
n4
Insert Coin
Síndico Apocalipse
Quadrinho Eleitoral Gratuito 
Gente como a gente
Vozes das Selva
Fagundes (editado)
n5
Os gatinhos 
A queda dos países do Leste
Capitão Douglas Manu Militari
Tesouros do Japão 
Forza Don Luigi
Horda
n6
O Jacaré do Tietê
O condomínio PIB
Paint Ball
É Guerra Santa? (os gatinhos)
Objeto de Desejo (Piratas)
Fagundes Meu Saco Meu Tesouro 
n7 primeira edição verticalizada 
A revelação -  crítica ácida a igreja católica
Condomínio Ame-o ou abomínio-o 
Novo Código Eleitoral
Crise
A noite é uma criança estúpiada e mal criada
Cartas do Tietê
n8
Motim
Que fim levou Baby Jane?
Fagundes
n9
Silver Joe
Horda pinta e borda
Como fazer um fanzine
Ao mestre com carinho
Dança dos Gatos
n10
Salvador 40 Graus
Ghost não se discute
Próspero 3 vezes
Destino de Sereia
Condomínio em Notícias
Edmundo Cachín Medina
Meu Síndico Inesquecível
n11
A primeira execução da pena de morte no Brasil
O Barulho dos inocentes
Quadrinhos do Harvey Pekar
De Noite todo os gatos são pardos
Como foi o crime
n12
Republicação de história da época do circo
A terceira Margem - Batman contra os piratas
n13 
Vila Madalena
Fagundes em Duelo de Titãs
Rascunho
Sindicato de Piratas
Rum
Nada como um circo após ao outro 
n14, Última edição
Shangri-lá (os piratas)
Aqui
O condomínio
Darling Diary




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